Rescaldo nos bastidores do MIUT 2016
Marquei voo para a Madeira no mesmo dia em que um colega de equipa me ofereceu a sua inscrição no MIUT. Surgiu-lhe um imprevisto e eu não tinha nada melhor para fazer nesse fim-de-semana. Era isso ou ficar em casa, de pijama, a preencher a declaração de IRS e a tirar macacos do nariz. Tirar macacos do nariz e colá-los por baixo do sofá é um dos meus passatempos preferidos. Pensei, na minha hercúlea ingenuidade, que a 2 meses da prova seria possível mudar o nome da inscrição. Não foi. O ponto 3 do regulamento do MIUT não permite a transmissão da inscrição para outro atleta. Apenas o reembolso é permitido, mediante apresentação de certificado médico. Mas quem é que no seu juízo perfeito se lembra de ler regulamentos? O regulamento de uma prova é o equivalente ao rótulo das embalagens de douradinhos, às instruções de utilização de preservativos, aos contratos de crédito habitação e aos procedimentos de segurança dos aviões. Ninguém lê essa merda! Não obstante, por muito quer me custe, hoje não tenho outro remédio senão agradecer à Organização. Obrigado por me terem impedido de participar no MIUT. Se tivesse participado, o mais provável é que tivesse falecido a meio do Pico Ruivo e amanhã por esta hora estaríamos todos a assistir à minha missa de sétimo dia.
Com a minha declaração de IRS preenchida, validada e devidamente submetida, resolvi ficar com o voo e parti rumo à Madeira com vista a dar assistência aos meus colegas de equipa. O objectivo era acompanhar os últimos 40k da prova no terreno e aproveitar para fazer um treino longo. No total ainda fiz 55k com 3.000D+, mais do que aqueles que logo aos 30k fizeram pisca à direita e encostaram a carroça em Estanquinhos. Segundo testemunhos no local, alguns meteram logo 4 piscas. Partiram a embraiagem a meio da subida e nem tempo de encostarem tiveram. Coitados. Que pena. Estão a ouvir isto? Isto é o violino mais pequeno do mundo a tocar uma melodia surda em honra das vítimas do MIUT.
[As vítimas da EDV-Viana Trail estavam todas alinhadas à partida. É como se já desconfiassem. Que patos!]
Para outros, o mais difícil da prova foi mesmo chegar ao Funchal. Para mim também não foi pêra doce. Primeiro, no Aeroporto do Porto, confundiram o meu isotónico com droga—tinha-o escondido em saquinhos de plástico transparente no meio da minha roupa interior, entre cuecas e ceroulas—e chamaram-me à parte para ser revistado. Depois, o avião aterrou na ilha errada (Porto Santo) por causa do mau tempo e tive de esperar 3h no lobby do hotel até sermos informados de que, afinal, não havia quartos para todos—e que os restantes (eu incluído) teriam de ficar noutro hotel. Pior do que tudo, ainda assim, foi ver o efeito que esta situação teve no Jérôme. O meu Xuxu tinha aterrado no dia anterior, foi-me esperar ao Aeroporto do Funchal e ficou desconsolado quando o informei de que passaria a noite em Porto Santo. O coitado teve de dormir sozinho. Sugeri-lhe que metesse mais uma manta na cama para não ter frio. A minha viajem de ida só não foi uma seca maior porque deu para meter conversa com outros atletas. Sabem como identificar um atleta de Trail num aeroporto? É fácil: são aqueles que exibem as suas t-shirts, camisolas, casacos e coletes de finisher das provas mais duras que fizeram até à data. Mais fácil ainda é identificar as fãs do TopMáquina: são aquelas que se atiram aos meus pés, histéricas, exigindo um seio autografado.
[Muita camisola de finisher do UTAX andou a passear pela Madeira.]
No dia da prova levantei-me às 6h00 da manhã e fui à pata do Funchal ao Pico Areeiro, primeiro por estrada até ao Poiso (abastecimento dos 90k) e depois daí ao Areeiro usando o percurso da prova em sentido contrário. Uma vez que a Organização previa a passagem do primeiro atleta por volta das 10h30, qual não foi o meu espanto quando me cruzei com o líder da prova na descida após o Areeiro. Eram 9h40 e o americano javardolas já levava 50min de vantagem em relação ao recorde da prova. Incentivei-o à sua passagem no meu inglês macarrónico e ele agradeceu de boca cheia com um simples “Obrigado”, projectando uma manada de gafanhotos de chocolate na minha direcção. Sei que os gafanhotos eram de chocolate por causa da cor (castanha) e porque depois vi-o num posto de abastecimento a comer chocolate como um javardo. Resultado: fiquei com a minha t-shirt de finisher do Trail de Afife toda borrada. Era a minha t-shirt preferida. Digo “era” porque já a vendi no ebay por uma pequena fortuna. Uma t-shirt simples vale pouco, mas borrada com o ADN do Zé Miller vale 500 dólares.
Os especialistas prevêem que a vitória esmagadora do Zé Miller terá efeitos profundos no Trail Nacional. Os portugueses nunca viram nada assim, e muitos são os atletas “tugas” que já alteraram o seu plano de treinos. “Correr à labrego” e “comer à javardo” são duas actividades que muitos passaram a incorporar nas suas sessões de treino semanal. A EDV-Viana Trail não anda a dormir e já pediu patrocínio aos chocolates Avianense e encomendou 5 passadeiras com vista a instalá-las no navio Gil Eanes. Relembro que o Zé trabalhava em cruzeiros e passava as noites a treinar nas passadeiras do ginásio e escadarias do barco enquanto os seus colegas relaxavam no bar. Pessoalmente, fiquei contente por saber que ele usa os mesmos géis que eu. Quer isto dizer que estou no bom caminho. Agora só me falta comprar umas Nike manhosas na Sportzone e um Casio na feira de Ponte de Lima para ganhar o MIUT 2017. Tenho pena dos representantes portugueses da Suunto e da Garmin, pois vão ressentir-se nas vendas. O pessoal já se apercebeu de que, afinal, não é preciso um relógio GPS para ganhar o MIUT. E que panenleirice é essa dos impermeáveis e corta-ventos? Isso é para meninos! Homem que é homem faz o MIIUT todo em mangas cavas.
O MIUT, não só foi um sucesso organizativo, como também lançou novas tendências. Bastões artesanais e manguitos cor-de-lagosta foram algumas das inovações com estreia mundial na Madeira. Vi alguns atletas—nomeadamente estrangeiros—com bastões de madeira. Aos olhos dos mais distraídos, quase parecia que os bifes se tinham arrependido de não terem trazido os seus bastões de carbono e subiram o Pico Ruivo com o auxílio de muletas fabricadas pelo caminho. Quanto aos manguitos cor-de-lagosta, estes ainda tiveram mais sucesso. Ninguém partiu com eles, mas todos os exibiam na meta.
A Organização esteve ao mais alto nível: logística impecável, segurança exemplar, abastecimentos fartos e marcações perfeitas. O MIUT não se livrou, porém, de um escândalo de dimensões apocalípticas. Designá-lo-emos por “Isotónicogate”. No primeiro abastecimento (Fanal, 17,7k), os voluntários informavam os atletas de que o isotónico aí disponibilizado só podia ser consumido no local por meio de copo. Ou seja, os atletas não podiam abastecer-se e bebê-lo pelo caminho. Não dava para todos, justificavam eles. E eu pergunto: se não dava para todos, para que raio disponibilizá-lo in the first place? Nesse caso, queria ver quem é que me impediria de beber 69 copos de penalti? Posto isto, muitos saíram do abastecimento com a boca cheia de isotónico, cuspiram-no depois no seu reservatório de hidratação e diluíram-no em água. Estamos, portanto, perante o primeiro abastecimento homeopático da história do Trail Mundial.
Perdi a minha boleia no Poiso e fiz os últimos 26k na companhia do trilho maravilha—Cocó, Ranheta e Facada. Que é como quem diz: Faria, Marques e Martins. O primeiro deu o litro e fechou a equipa EDV-Viana Trail, levando-a a um brilhante 3.º lugar à Geral. O segundo fez a prova toda com a palmilha da sapatilha esquerda a sair-lhe pelo calcanhar e, ainda assim, venceu o escalão M50. O terceiro tem um rabo muito bom. Emocionei-me ao ver a forma como os três percorreram os últimos quilómetros. Sempre que um caminhava, os outros caminhavam; sempre que um corria, os outros corriam; sempre que um bebia, os outros bebiam; sempre que um parava para mijar, os outros mijavam também; sempre que um apalpava o rabo a uma caminheira, os outros apalpavam também. O Trail é isto: entreajuda, camaradagem, aliviar a tripa e apalpar rabos. A competição pouco importa, tanto que hoje em dia somos todos campeões. Tantas foram as cerimónias de pódio do MIUT, que perdi a conta ao número de vencedores. Com classificações à Geral, ATRP, Regional e Escalões Etários, é quase impossível não sacar uma classificação à campeão. Ouvi um tipo gabar-se por ter sido o 6.º Madeirense M45 no Mini-Trail. Só faltava dizer que tinha sido o melhor da sua rua.
Fiz questão de não tirar uma selfie com o Zé Miller. Ele bem implorou, mas eu mandei-o passear. Chato de merda! Passou o Domingo todo a pedir aos portugueses para tirarem uma selfie com ele. Eu cá não tenho tempo para americanos javardos. Prefiro portuguesas com boas maneiras à mesa!