RESCALDO MELGAÇO ALVARINHO TRAIL 2021
[Créditos: Matias Novo]
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[Créditos: Matias Novo]
Em vez de correr como um maluquinho, vou começar a andar de cachecol ao pescoço e reclamar a vitória de uma equipa como se fosse minha—como se tivesse sido eu a marcar os golos. Para quê fazer desporto se posso ser aplaudido ao ver os outros fazê-lo? Os adeptos de futebol não dão um único pontapé na bola, mas recebem parabéns dos adeptos rivais e—espante-se!—dizem-se orgulhosos.
Orgulho? De quê, exactamente? De festejarem os golos dos outros? De fazerem figas quando o adversário falha um penalti? De irem a Fátima a pé quando o clube do coração é campeão? De fazerem muita força, cerrarem o olho do cu e enviarem energia positiva aos jogadores via telepática? Orgulho, por definição, implica mérito. Se sentimos orgulho por algo é porque tivemos mérito na sua conquista. Por outras palavras: como podemos ter orgulho em algo sobre o qual não tivemos qualquer influência?
Sou do tempo em que o orgulho era um sentimento reservado às nossas conquistas pessoais. Senti orgulho quando fiz a cadeira de Transferência de Energia e Massa com um 10 à rasquinha; senti orgulho quando passei no exame de condução à terceira tentativa, depois de quase atropelar uma septuagenária e bater num caixote do lixo ao estacionar em espinha; senti orgulho quando acabei o Ultra Trail Serra da Freita com um andar diferente e as virilhas em carne viva. Isso é orgulho.
Alguns argumentam que sentem orgulho porque são sócios, pagam cotas e vão ao estádio apoiar a sua equipa. Tudo bem. Por mais insignificante que essa influência seja, é certo que ela existe. No entanto, só um lunático acredita que são as cotas e o apoio que fazem com que as bolas entrem na baliza do adversário. Outros argumentam que sentem orgulho porque tiveram a sensatez de escolher o clube A em vez do clube B. A sério? Escolheram? Escolheram nada. Um tipo é de determinado clube por acaso: por influência de familiares, amigos ou, simplesmente, porque esse é o clube que mais vezes ganha—e todos gostamos de vencedores.
O mesmo aplica-se ao orgulho nacionalista. Não o percebo. O que quer dizer isso de ter orgulho em ser Português? Devo felicitar toda a gente que tem orgulho em ser Português porque escolheram nascer em Portugal? Podiam ter escolhido nascer na Alemanha, Suíça ou Grécia, mas tiveram a inteligência, enquanto fetos, no útero das suas progenitoras, de escolherem Portugal. A sério? Escolheram? Lamento, mas ter orgulho por algo sobre o qual não tivemos qualquer influência não é de parabenizar. Por outro lado, não vejo ninguém dizer que tem orgulho por ter olhos castanhos, cabelo encaracolado ou uma predisposição genética para ter cancro do duodeno.
Eu percebo o orgulho dos familiares dos jogadores do Sporting, da sua equipe técnica e até do roupeiro da equipa de Alvalade. O que eu não percebo é o orgulho de alguém que não tem qualquer tipo de ligação directa com as pessoas que fazem parte de uma equipa. Seria o mesmo se eu sentisse orgulho pelas conquistas do Mourinho ou do Cristiano Ronaldo. Porquê orgulho? Porque calhou nascer no mesmo país do que eles? Posso sentir-me feliz, mas não sinto orgulho.
Sentem-se felizes pelo vosso clube? Tudo bem. Faz sentido. Eu não estou a julgar-vos por retirarem felicidade das conquistas do vosso clube. Com a felicidade concordo. Eu também sinto-me feliz com as conquistas do João Almeida, Nélson Évora ou António Félix da Costa. Só não concordo com o orgulho. Não digam que têm orgulho. Se têm “orgulho” do vosso clube, experimentem fazerem em vez de verem os outros fazerem. Em vez de verem os outros jogarem, joguem vocês. Pratiquem desporto, compitam e ganhem alguma coisa pelas vossas próprias mãos. Talvez então saibam o que é sentir orgulho a sério.
O meu orgulho é este:
Não tenho medo do escuro. Não tenho medo de alturas. Não tenho medo do lobo mau. Não tenho medo de morrer sozinho. Não tenho medo da claque dos Super Dragões. Não tenho medo de comer churros de uma roulote e fazer cocó nas calças. Não tenho medo de muitas coisas, mas tenho medo da Freita. Mais concretamente, tenho medo da Serra da Freita. Mais concretamente ainda, tenho 'medo que me pelo' do José Moutinho.
Vejo o José Moutinho e as pupilas dilatam-se-me, fico com pele de galinha, arrepiam-se-me os pêlos do cachaço, os testículos recolhem-se-me ao interior do corpo e começo a falar com voz de peixeira a apregoar o pescado. «Mas porquê?», perguntam vocês. Porquê se o José é o pai do Trail Nacional? Porquê se o José é um amor de pessoa? Antes de mais, porque tenho cu. Não sei a origem da expressão "quem tem cu tem medo", mas desconfio que surgiu numa prisão. Mas já estamos a desconversar... Antes de esmiuçarmos a raíz do meu medo, deixem-me só que vos conte uma história de embalar. Embalar no sentido de dormir, mas daquele dormir antes de acordar no próprio vómito, à la Jimmi Hendrix.
Infelizmente não comecei a correr porque pesava 220kg e fumava 5 maços de tabaco por dia, pois nesse caso teria uma história emocionante de superação para vos contar. A realidade é bem menos interessante. Comecei a correr no século passado, no ano da graça de 1997. Na altura jogava futebol nos escalões de formação e foi-me proposto, por um colega de equipa, começarmos a correr nas férias grandes para chegarmos melhor preparados ao início da época futebolística. Lembro-me de sentir que aquele percurso—que nos levava 25min a subir e 15min a descer—era o nosso Kilimanjaro. Sempre pensei que teria uns 10k. Anos mais tarde, equipado com um relógio GPS, descobri que nem 4k tinha.
Entretanto, em 1998, consegui acabar o secundário, os meus pais deram-me um chuto no cu e fui tirar um curso para a metrópole. Deixei o futebol, continuei a correr e fiz a minha primeira prova de atletismo em 2000. Como sou um tipo que gosta de fazer as coisas com calma e não dar um passo maior do que a perna, entrei a matar na Meia-Maratona de Viseu, federei-me e continuei a fazer provas de estrada até 2012—ano em que fiz a minha primeira prova de Trail. Novamente, como sou um tipo que gosta de fazer as coisas com calma e não dar um passo maior do que a perna, escolhi os 70km do UTSF—Ultra Trail Serra da Freita para me estrear no Trail. A Freita é perto de casa dos meus pais, à data tinha 3 maratonas de estrada no currículo e julgava, do alto da minha sobranceria, que acabar o UTSF eram favas contadas. Fui ao engano. Caí 10 vezes—sim, contei-as—e pensei em desistir outras tantas. Ainda hoje não sei como, mas lá consegui cortar a meta ao cabo de 11h30—já por essa altura o Luís Mota havia tomado duche e enfardado 3 bifanas no Parque de Campismo do Merujal, local que à data era o ponto de partida e chegada da prova.
O meu medo está enraizado, portanto, numa experiência traumática. Lembro-me, durante a prova, de muitas vezes ter tido vontade de desistir—e só não o fiz porque as vontades não coincidiram com os abastecimentos. Caso contrário... Felizmente coincidiram com locais no cu de Judas, onde o dito cujo perdeu as botas: zonas onde não se vislumbrava uma alma penada ou uma casa habitável, num ângulo de 360º, até onde a vista podia alcançar. Lembro-me, no final, de estar a meio da segunda bifana e começar a tremer inexplicavelmente. Lembro-me, na primeira noite depois da prova, de acordar com suores frios e uma fome desmesurada, como se o meu estômago estivesse a comer-se a si próprio. Acordei às 3h da manhã e comi um frango de churrasco inteiro.
A dificuldade do UTSF não é a distância, não é o desnível, não é o calor, não é a exposição aos elementos. A dificuldade está na dificuldade de progressão e na imutável certeza de que o percurso nunca nos dará descanso. Nunca. Lembro-me de invariavelmente vencer uma determinada secção, olhar para trás e pensar: «O idiota que desenhou isto fez de propósito para escolher o trilho mais complicado para chegar de A a B.» A dificuldade, no fundo, é que o percurso é desenhado por um louco. Acham que estou a exagerar?
Em 2017, o vencedor do UTSF havia cortado a meta há coisa de meia-hora e estávamos todos à espera dos nossos restantes colegas de equipa. Eis senão quando o Moutinho se aproxima do Ricardo Silva e começa a dissertar sobre a menina dos seus olhos. O orador de pé, o destinatário do sermão sentado no chão e os demais meninos à volta da fogueira. O Pai do Trail Nacional era todo ele um espectáculo: o gesticular extravagante dos braços como se fosse abraçar o mundo; o movimento de ancas de trás para a frente como se estivesse a fazer uma pega de touros; e o entusiasmo inebriante da sua voz, deixando escapar meia dúzia de gafanhotos.
Estava de tal forma hipnotizado por aquela figura que, sinceramente, não ouvi metade do que ele disse. Os meus sentidos entraram em overload e, embora os meus olhos e ouvidos conseguissem captar a informação, o cérebro por vezes não tinha capacidade para interpretá-la. Precisaria de mais 4GB de RAM para que o meu sistema operativo conseguisse correr o programa Moutinho 1.0.
Ainda assim, pese embora o Alzheimer momentâneo, lembro-me de 3 postas de pescada que me marcaram. O Moutinho que me perdoe a indiscrição. Parafraseando, foi qualquer coisa do género:
"Eu não sou ninguém. Vocês é que são os intérpretes do que eu faço."
"A prova está desenhada para que vocês cheguem mortos aos 30k."
"Não me interessa que o vencedor seja o mais forte fisicamente. Interessa-me que seja alguém que se conheça bem a si próprio e saiba gerir bem a prova."
Tudo isto para dizer que estou inscrito no UTSF e que a prova é daqui a menos de 2 meses. Até já tenho pesadelos. No outro dia sonhei que estava a ser engolido pelas 'goelas do mundo'. Não sei o que fazer. Acendai uma velhinha por mim e, caso seja necessário, encomendai uma missa de sétimo dia para o vosso mais do que tudo.
Beijocas na terceira bochecha.