Atropelei um Carro
Há muito tempo que não ficava tanto tempo sem correr. Da última vez que me lesionei ainda corria de t-shirt de algodão, relógio Casio e pêlos nas pernas. Corria o ano de 2001. A bem dizer não foi lesão. Foi desgosto amoroso. Apaixonei-me por uma fisioterapeuta estrábica, roubei-lhe um beijo e ela partiu-me o coração—e coração partido não configura lesão. A catraia não gostou do beijo e tencionava partir-me os cornos. Acabou por partir-me apenas o coração. Por sorte era estrábica. Apontou para a cabeça e acertou-me no coração. Do mal o menos.
Já passaram duas semanas e a clavícula ainda me doí. Esta, sim, uma lesão a sério. Também quem é que me mandou atropelar um carro? Estava a pedi-las. Mesmo. A vítima deslocava-se num veículo automóvel e eu—o culpado—fazia-me transportar num veículo de duas rodas desprovido de tracção motorizada—vulgo bicicleta. Eu ia de cima para baixo. Ele vinha de baixo para cima. Eu pretendia seguir em frente. Ele virou à esquerda, invadiu a minha via de trânsito, atravessou-se à minha frente, travou quando me viu e eu ainda tive a desfaçatez de ir contra ele. Minha culpa. Minha tão grande culpa.
[créditos: Duarte Nuno Oliveira-Zahir]
O estimado leitor está neste momento a questionar os seus conhecimentos do código da estrada. Não esteja. Lamento confundi-lo. Não é essa a minha intenção. A prioridade era minha? Era. Nada porém justifica ter-me amandado para cima da viatura. Não havia necessidade. Popó a cheirar a novo, acabado de sair do stand, branco como a neve—e eu vou e risco-lhe a pintura? Não está certo. Faltaram-me os reflexos. Nem travar consegui. Devia ter guinado para a direita, evitado a viatura e embatido no muro contiguo à estrada. Antes o muro que o carro. Podia não estar agora aqui a contar a história, mas ao menos não estaria com peso na consciência. Morto não tem consciência. Mas não morri. Ao invés de falecer, fui projectado 3 metros a 40km/h por cima do capô da viatura, fiz um mortal à frente, dei finalmente uso ao capacete, beijei o chão com a clavícula direita e fui arrastado 4 metros sobre alcatrão fofinho. Culpa da velocidade cinética em conluio com a gravidade. Resultado: fractura da clavícula, costas pisadas e o rabinho assado.
Embora não o tenha verbalizado, o condutor estava visivelmente aborrecido com o meu comportamento. Onde é que já se viu? Um tipo deslocando-se de carro para o trabalho e, vindo do nada, aparece-lhe um ciclista para riscar a pintura da sua nova viatura? No lugar dele ficaria pior que fodido. Daí que logo lhe tenha pedido desculpas. Ele aceitou-as e depressa se acalmou. Foi ele, aliás, que ainda me fez o favor de chamar a ambulância. Disse-lhe que não era preciso; que não tinha partido os braços; que conseguia alcançar o bolso do telemóvel. Mas ele insistiu. Santo homem.