«O Trail já não é o que era»
Começam a irritar-me profundamente os tipos que dizem que o “Trail já não é o que era”. Estes iluminados dizem que o Trail é entreajuda, divertimento e camaradagem – e que isso agora se está a perder. Dizem que o Trail está a transformar-se em atletismo de competição.
É sempre a mesma história: depois de uma prova importante do calendário nacional, onde a competição é rainha, os oráculos da desgraça saem dos seus buracos para bradar aos sete ventos as suas premonições apocalípticas. Alguns ameaçam, inclusive, deixar o Trail. Já vão tarde.
Não sei em que mundo vive esta gente. Comparam a competição ao Hunger Games, como se os atletas andassem a passar rasteiras uns aos outros para cortar a meta em primeiro lugar.
O mais incrível no meio disto tudo é que a verdade é justamente o oposto. A verdade é que os melhores atletas da nossa praça são o exemplo acabado de fair-play. Querem um exemplo? Dou-vos dois: olhem para os dois primeiros classificados dos Trilhos dos Abutres deste ano e dificilmente encontrarão pessoas mais afáveis e humildes. Querem entreajuda e camaradagem? É com eles mesmo. Pôr em causa o carácter de quem corre na frente só porque corre na frente é de uma falta de seriedade inqualificável. Há excepções? Claro que sim. Mas as excepções existem tanto na frente como na cauda do pelotão. Ponham isto na vossa cabeça: a única diferença entre os primeiros e os últimos é que primeiros chegam primeiro à meta.
Mas vamos imaginar, por breves instantes, que os da frente se andam efectivamente a matar por um lugar na classificação geral. Mesmo assim, em que é que isso prejudica quem vai às provas apenas para se divertir? De que forma é que os tipos da frente impedem os tipos de trás de se divertirem? É que não há qualquer tipo de interacção entre os dois grupos. Expliquem-me com desenhos para eu perceber onde é que está o Wally nesta equação.
Estes tipos defendem que a competição não tem lugar no Trail. Detesto bater no ceguinho, mas vou ter de espancar o desgraçado. É que eu já escrevi sobre o assunto e não fica melhor do que isto:
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Nada contra os que vão às provas apenas para fazer a festa. Tudo a favor. Todos gostamos de comer, beber, posar para as fotos e fazer macacadas – eu próprio sou muito macaco. Até aqui tudo bem. Agora, tudo contra os que vão só pela festa em desprimor da competição. Fica mal, soa a desculpa, como quem diz: “Eu só não compito e faço um bom lugar porque não me apetece, pois para mim o mais importante é conviver e divertir-me.”
Há hoje uma tendência crescente para desvalorizar a competição: diz-se que competir não é importante; que o mais importante é o convívio, o divertimento e a saúde. Não posso estar mais em discordo. O mais importante – seja no atletismo, no ciclismo ou no jogo do berlinde – é competir. As provas são feitas para competir. É que se o objectivo não é competir, quanto mais não seja com nós próprios, então para que raio pagar a inscrição, deslocação, alojamento e ir às provas? Não faz sentido. Nesse caso, mais vale ficarmo-nos pelos convívios de fim-de-semana com os amigos – os “Free Runs”, como agora se chamam.
Sabem uma coisa? Competir é bom; é salutar; é suor e lagrimas; é sangue na guelra. Dentro dos limites do respeito pelo adversário, até uma pitada de picardia não faz mal a ninguém. Competir também faz parte da festa. Não pensem, por um segundo que seja, que quem compete não se diverte. Sofre? Sofre. Mas também se diverte. Diverte-se com o sofrimento. Não só mas também.
Não estou a dizer que toda a gente que participa em provas deva competir. Nada disso. Compete quem quer, como é evidente. O que eu defendo, isso sim, é que quem não compete não tem o direito de desvalorizar a competição – e quem compete – em detrimento da festa.
Toda esta mentalidade do “competir não é importante” vem na onda do movimento da auto-estima, que teve origem nos Estados Unidos em meados da época de 70 – e que nós, em Portugal, começamos agora a implementar na nossa sociedade com um atraso de 4 décadas. Portugal é assim: não só copia mal, como cópia com atraso.
Este é o mesmo movimento responsável pela ideia de que todas as crianças são especiais, todas nascem com as mesmas capacidades, todas são vencedoras e que para conseguir basta acreditar. Faz-se uma corrida na escola primária e todos os miúdos recebem um troféu; é indiferente ficar em primeiro ou em último; são todos vencedores. Resultado: uma geração que se acha especial, com a auto-estima a níveis recorde; uma geração que não luta, que espera que as coisas lhes caiam do céu, que desiste ao primeiro obstáculo; a geração nem-nem, que nem estuda nem trabalha.